Carecas, inseguros e confusos
Lisboa, 9 e meia da manhã, algures no percurso da carreira nº 6 da Carris.
Entra no autocarro um indivíduo de idade próxima da metade da esperança média e vida (que isso da meia-idade já não se usa, é feio), vestindo fato e gravata, de óculos grandes meio desalinhados na cara, ostentando um farfalhudo bigode, tão grisalho como os poucos cabelos que ainda lhe nascem ao lado da orelha direita e descansam contrariados por detrás da orelha esquerda.
Antes de entrar já se fazia ouvir aos passageiros dos últimos bancos da dita carreira. Porque isto era uma vergonha, “Eles” róbom uma pessoa todes os dias. Vejam lá agora cu passe válide até 2008 afinal já não serve pa nada, caté teve dir “tirar” outro (sem roubar nada a ninguém, qisto de tirar é como se tira a carta de condução, um curso na universidade ó as férias). E inda lhe pediram mais 5 euros pu passe nôve, que nem é nenhuma fortuna mas sempé dinheiro e se a gente já é róbáda cu que paga pa andar dótócarro e cas greves e não sei quê, eles é que deviam de pagar à genti. E agora mudam os sítios donde os ótócarros passam e ninguém informa, ninguém sabe de nada e a gente é que se amola. Que já tinha saído de dois ótócarros diferentes, hã, já era o terceiro que apanhava - ah pois, o terceiro - e inda ali andava às voltas, com coisas pa fazer, parecia uma bola de ténes. E ninguém qué sabêri! Metoristas, amnestradores, directores, isté tuda mêma corja.
Tudo isto era dito com a maior das veemências e no mais alto volume, como a própria jugular atestava saltando furiosamente do pescoço fora. Na mão esquerda ia uma pasta com uns papéis que tentavam desesperadamente fugir pelos cantos. Apertava com a mão direita o varão do autocarro como se estivesse a estrangular “Eles” (os que róbom a gente e dão cabo diste, os que se governam a eles e não querem saber dozoutres, os que fazem as greves pa róbar a gente), todos os “Eles” deste País. Entretanto, ia convidando os passageiros mais próximos a aderirem ao seu discurso dando-lhes uma simpática cotoveladita ou deixava cair um olho para dentro do decote das passageiras mais novas.
E continuava: porque os culpades d’Isto são Eles. Eles é que se amanham, a Eles e aos amigos e não querem saber do povo pa mai nada. Quando eram os ingleses na Carris, ganhavam grandes ordenados, havia dois homens em cada ótócarro e isto dava lucro. Agora cus meteram cá a Eles, os pertugueses, já isto não funciona, só o que fazem é róbar a gente, quisto é um País datrasados ó ladrões. Ele é que já não tem vinte anos, senão os filhos iam era nascer a Espanha, quisto de se ser português é uma vergonha. Mas um dia inda põe uma bomba em S. Bento quEles vão ver o qué bom pá tosse. Eles candassem dótócarro pa ver o cu Zé Povinho sofre…
No meio de tudo isto lembrei-me de uma história da banda desenhada da Mafalda. Depois de ter ouvido uma conversa em que o Governo surgia como responsável por todas as desgraças, Gui, o irmão da Mafalda, resolve também culpar o Governo pela chuva que entretanto começara a cair.
Ora, tal como o Gui, o senhor do “ótócarro” sabia do que estava a falar porque já tinha ouvido em qualquer lado. “Eles” são os responsáveis por tudo “Isto” e são tão concretos e definidos como outra coisa qualquer. Ele até identificou os “Eles”: são aqueles que nos róbam e que se amanham, a “Eles” e aos amigos, os metoristas, amnestradores, directores, os que fazem as greves e os de S. Bento.
No fundo, no fundo, o que conta é a certeza com que dizemos as coisas. E o senhor do ótócarro disse tudo aquilo com a mesma certeza com que faz a teimosa marrafa todos os dias da direita para a esquerda. A certeza de que nunca ninguém irá descobrir a desorientação que lhe vai na cabeça, seja por causa da careca ou por causa do estado a que “Isto” chegou.
O que é “Isto” fica para uma próxima oportunidade…