2006/09/12

Carecas, inseguros e confusos

Lisboa, 9 e meia da manhã, algures no percurso da carreira nº 6 da Carris.
Entra no autocarro um indivíduo de idade próxima da metade da esperança média e vida (que isso da meia-idade já não se usa, é feio), vestindo fato e gravata, de óculos grandes meio desalinhados na cara, ostentando um farfalhudo bigode, tão grisalho como os poucos cabelos que ainda lhe nascem ao lado da orelha direita e descansam contrariados por detrás da orelha esquerda.
Antes de entrar já se fazia ouvir aos passageiros dos últimos bancos da dita carreira. Porque isto era uma vergonha, “Eles” róbom uma pessoa todes os dias. Vejam lá agora cu passe válide até 2008 afinal já não serve pa nada, caté teve dir “tirar” outro (sem roubar nada a ninguém, qisto de tirar é como se tira a carta de condução, um curso na universidade ó as férias). E inda lhe pediram mais 5 euros pu passe nôve, que nem é nenhuma fortuna mas sempé dinheiro e se a gente já é róbáda cu que paga pa andar dótócarro e cas greves e não sei quê, eles é que deviam de pagar à genti. E agora mudam os sítios donde os ótócarros passam e ninguém informa, ninguém sabe de nada e a gente é que se amola. Que já tinha saído de dois ótócarros diferentes, hã, já era o terceiro que apanhava - ah pois, o terceiro - e inda ali andava às voltas, com coisas pa fazer, parecia uma bola de ténes. E ninguém qué sabêri! Metoristas, amnestradores, directores, isté tuda mêma corja.
Tudo isto era dito com a maior das veemências e no mais alto volume, como a própria jugular atestava saltando furiosamente do pescoço fora. Na mão esquerda ia uma pasta com uns papéis que tentavam desesperadamente fugir pelos cantos. Apertava com a mão direita o varão do autocarro como se estivesse a estrangular “Eles” (os que róbom a gente e dão cabo diste, os que se governam a eles e não querem saber dozoutres, os que fazem as greves pa róbar a gente), todos os “Eles” deste País. Entretanto, ia convidando os passageiros mais próximos a aderirem ao seu discurso dando-lhes uma simpática cotoveladita ou deixava cair um olho para dentro do decote das passageiras mais novas.
E continuava: porque os culpades d’Isto são Eles. Eles é que se amanham, a Eles e aos amigos e não querem saber do povo pa mai nada. Quando eram os ingleses na Carris, ganhavam grandes ordenados, havia dois homens em cada ótócarro e isto dava lucro. Agora cus meteram cá a Eles, os pertugueses, já isto não funciona, só o que fazem é róbar a gente, quisto é um País datrasados ó ladrões. Ele é que já não tem vinte anos, senão os filhos iam era nascer a Espanha, quisto de se ser português é uma vergonha. Mas um dia inda põe uma bomba em S. Bento quEles vão ver o qué bom pá tosse. Eles candassem dótócarro pa ver o cu Zé Povinho sofre…
No meio de tudo isto lembrei-me de uma história da banda desenhada da Mafalda. Depois de ter ouvido uma conversa em que o Governo surgia como responsável por todas as desgraças, Gui, o irmão da Mafalda, resolve também culpar o Governo pela chuva que entretanto começara a cair.
Ora, tal como o Gui, o senhor do “ótócarro” sabia do que estava a falar porque já tinha ouvido em qualquer lado. “Eles” são os responsáveis por tudo “Isto” e são tão concretos e definidos como outra coisa qualquer. Ele até identificou os “Eles”: são aqueles que nos róbam e que se amanham, a “Eles” e aos amigos, os metoristas, amnestradores, directores, os que fazem as greves e os de S. Bento.
No fundo, no fundo, o que conta é a certeza com que dizemos as coisas. E o senhor do ótócarro disse tudo aquilo com a mesma certeza com que faz a teimosa marrafa todos os dias da direita para a esquerda. A certeza de que nunca ninguém irá descobrir a desorientação que lhe vai na cabeça, seja por causa da careca ou por causa do estado a que “Isto” chegou.
O que é “Isto” fica para uma próxima oportunidade…

2006/09/11

11 de Setembro


Passaram cinco anos desde o evento, ou conjunto deles que, segundo muitos observadores, mudou o Mundo para sempre. O espantoso é que tal afirmação foi proferida ainda no próprio dia, e por tantos outros peritos nos dias seguintes, como se a história não necessitasse de recuo para ser feita. Senti-me estúpido. Como é que eu não vira que o curso da história tinha mudado. E não era pouco, porque nos anunciaram uma mudança tão radical como aquela provocada por eventos históricos que marcam a mudança de épocas: a queda do Império romano do Ocidente, a chegada de Colombo às Américas ou a invenção de Gutenberg, etc.
Cinco anos depois, confesso que me mantenho burro. Não entendo, nunca entendi, onde está a mudança preconizada, para além das naturais mudanças que o tempo arrasta e as circunstâncias provocam.
Antes pelo contrário, ainda há certamente muito por explicar sobre o 11 de Setembro. Foi um dia terrível como tantos outros. Morreram em Nova Iorque, nesse dia, cerca de 3 mil pessoas, tantas ou menos das que provavelmente morrerão hoje ou ontem, algures, talvez no Iraque, talvez noutro Líbano. Dois dias insignificantes. Sê-lo-ão?

2006/09/07

É isto a Festa do Avante!

O António é um velho militante, rijo e de poucas falas como transmontano que é. Tem aquele cenho fechado quem já passou muito, pesa-lhe o andar, mas nunca pára que parar é morrer. Todos os anos, é vê-lo ali a trabalhar no bar de apoio ao estaleiro, na implantação da Festa. Anda o mais depressa que pode (às vezes faz questão de nos lembrar isso mesmo se estamos com mais pressa), mais uma cerveja, mais uma sandes, toma lá o café, camarada.
Nos outros meses do ano, é raro ver o António. Mas no Verão, nunca falha. Não me lembro de nenhuma Festa em que ele não estivesse lá, a cumprir a sua tarefa – que tal como todas as outras, é fundamental e tem que ser feita. Ao fim e ao cabo, o António (e tantos outros camaradas) é, como dizia o Brecht, um dos indispensáveis. É um daqueles (muitos, muitos mil) camaradas que fazem da Festa aquilo que ela é: não apenas a maior realização político-cultural do país, mas acima de tudo uma “cidade de três dias” em que a Amizade, a Generosidade, o Sonho, e tanta tanta vontade de Futuro tomam forma de madeira, de ferro, de pano e de tinta.
Costumamos dizer que a melhor parte da Festa é construí-la. Alguns de nós dizem até que “esta já está, agora venha outra”, quando os portões são abertos nas boas vindas aos visitantes que enchem a Atalaia de cor, de curiosidade, de alegria, de festa. Antes disso, durante aquelas semanas em que a Festa do Avante foi ganhando forma, ali apareceram estudantes, metalúrgicos, engenheiros, secretárias. E jovens, sempre. Muitos. A viver o poema da Maria Rosa Colaço: Ali chegavam para aprender / o sonho, a vida, a poesia.
À tarde, depois da jornada, lá nos juntávamos ao pé do António. Tantas vezes cansados, com as marcas do trabalho a pesar nos ombros, lá vinha uma cerveja, outro camarada que chegava, mais dois dedos de conversa sobre aqueles criminosos que continuam a matar lá no Líbano. Organizaram-se debates, sobre a Palestina, sobre Música de Intervenção. O Jerónimo esteve lá e discursou para saudar aquela gente toda que tinha saído de casa num Sábado de tanto sol, para ir ali trabalhar sem receber um tostão. E depois lá foi outra vez para o terreno ajudar na construção, como os outros.
Dizer que foram mais de 7700 participações durante as jornadas de trabalho pode correr o risco de não dar a ideia completa. Mas a verdade é que esta Festa, grande, cheia, única, só é assim porque é este Partido que a organiza e constrói. Porque são estes os ideais, os valores, os sentimentos que ali vivem. Porque é ali que ganha ainda mais sentido a frase de um camarada meu, que diz que “o Partido é a casa grande da Amizade”.
À noite, já com não sei quantos mil a percorrerem a Festa, a vivê-la e a fazê-la, actuava no Palco 25 de Abril o Coro Lopes Graça, numa homenagem ao Maestro no centenário do seu nascimento. Lá na fila de trás, de traje a rigor com laço ao pescoço e tudo, ali estava (para surpresa de muitos de nós) o António, cantando o Acordai e as outras Heróicas, num concerto memorável. À saída do Palco, já depois do espectáculo, fui dar com ele entre a Celeste Amorim, o Caeiro, o Valverde, grandes vozes que cantam o Sonho e a Luta.
Naquele abraço camarada de quem festeja a própria festa, disse ao António que tinha sido um grande espectáculo. Ele, que sorria com um olhar que nunca lhe havia visto, respondeu-me “é uma grande festa. Mais ninguém conseguia fazer isto. E não hão-de acabar com ela, eles bem queriam…”.
O António tem toda a razão.